quinta-feira, 22 de abril de 2010

DOIS TEMPOS...




24 de abril de 1905



Neste mundo, existem dois tempos. Existe o tempo mecânico e o tempo corporal. O primeiro é tão rígido e metálico quanto um imenso pêndulo de ferro que balança para lá e para cá, para lá e para cá, para lá e para cá. O segundo se contorce e remexe como uma enchova na baía. O primeiro não se desvia, é predeterminado. O segundo toma as decisões à medida que avança.

Muitos não acreditam que o tempo mecânico exista. Quando passam diante do grande relógio na Kramgasse, não o vêem; tampouco escutam suas badaladas quando estão despachando pacotes na Postgasse ou caminhando entre flores na Rosengarten. Usam relógios de pulso mas apenas como ornamento ou como cortesia para com aqueles que acreditam ser instrumentos de medição de tempo um bom presente. Em suas casas eles não tem relógios. No lugar deles, ouvem as batidas dos seus corações. Eles sentem os ritmos de seus humores e desejos. Essas pessoas comem quando sentem fome, vão para o trabalho, na chapelaria, ou no laboratório, na hora que despertam do seu sono e fazem amor a qualquer hora do dia. Essas pessoas riem só de pensar no tempo mecânico. Sabem que o tempo se movimenta espasmodicamente. Sabem que o tempos e arrasta para frente com um peso nas costas quando estão levando uma criança as pressas para o hospital ou quando têm que sustentar o olhar de um vizinho que foi vítima de alguma injustiça. E sabem também que o tempo atravessa em disparada seu campo de visão quando estão saboreando uma boa comida com amigos ou sendo elogiadas ou quando estão deitadas nos braços de um amante secreto.

Por outro lado, há aqueles que pensam que seus corpos não existem. Eles vivem de acordo com o tempo mecânico. Levantam-se às sete da manhã. Almoçam ao meio dia e jantam às seis. Chegam aos compromissos pontualmente, na hora marcada. Fazem amor entre oito e dez da noite. Trabalham quarenta horas por semana, lêem o jornal de domingo a domingo, jogam xadrez nas terças à noite. Quando seus estômagos reclamam, olham o relógio para saber se é hora de comer. Quando começam a ficar desatentos em um concerto, olham o relógio acima do palco a fim de ver quanto tempo falta para ir para casa. Sabem que o corpo não é resultado de uma mágica fantástica mas uma coleção de elementos químicos, tecidos e impulsos nervosos. Pensamentos não são mais que oscilações elétricas no cérebro. Excitação sexual não passa de um fluxo de elementos químicos para as extremidades de certos nervos. Tristeza nada mais é que um pouco de ácido transfixado no cérebro. Em resumo, o corpo é uma máquina, sujeito às mesmas leis da eletricidade e da mecânica que um elétron ou um relógio. Portanto, ao falar do corpo deve-se usar a linguagem da física. E, se o corpo fala, é a fala de nada mais que um número de alavancas de forças. O corpo não é uma coisa que se obedece e sim uma coisa que se manda.

Respirando-se o ar noturno ao longo do rio Aare, é possível encontrar evidências de dois mundos em um. Um barqueiro calcula a posição e seu barco no escuro contando os segundos em que é levado pelo curso de água. “Um, três metros. Dois, seis metros. Três, nove metros.” Sua voz rasga a escuridão com sílabas claras e seguras. Sob um poste de luz na ponte Nydegg, dois irmãos que não se viam fazia um ano bebem e riem. O sino da catedral de St. Vincent bate dez vezes, em segundos apagam-se as luzes dos apartamentos perfilados na Schifflaube, numa perfeita resposta mecanizada, como as deduções da geometria de Euclides. Deitados à margem do rio, dois amantes olham preguiçosamente para o céu, despertados de um sono atemporal pelos distantes sinos da igreja, surpresos por perceberem que a noite caiu.

Onde os dois tempos se encontram, o desespero. Onde os dois tempos se separam, a satisfação. Pois, milagrosamente, um advogado, uma enfermeira, um confeiteiro podem construir um mundo em qualquer um dos tempos, mas não nos dois. Cada tempo é verdadeiro, mas as verdades não são as mesmas.


LIGHTMAN, Alan. Sonhos de Einstein. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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