terça-feira, 6 de abril de 2010

Cult Blasé...



[...] Não há mais tempo para ter somente os humanos como aliados. Nem espaço para descartar tantos objetos transformados em lixo. Estes luxos agonizam. Também não é possível (e esperamos que não seja desejável) simplesmente inverter os termos de uma antiga relação de dominação e colocar não humanos no lugar dos humanos. Mas, paradoxalmente, ainda é tempo de combater a indiferença.

Há quem considere a indiferença pior que a dor. Sentir dor é ainda um modo de sentir, de se confrontar com a vida. Mas a indiferença é como um corpo de sombra sem perfis. Não tem cor nem carne. Não tem lado e nem quina, é difícil confrontá-la. Quem é atacado pela indiferença transforma o corpo em alma penada, passa de um canto a outro sem nenhuma melodia. Nunca se sabe quando a indiferença chega ou quando parte. Assemelha-se ao câncer.. Uma vez presente, ela ocupa todo o espaço de um pingo de vergonha de ser desmedida. A indirefença sinaliza que a diferença fracassou. Não é como o tédio, porque este já possui algum gosto, pode ser comparado a um corpo feito de lados.

Mas há quem considere que pior do que a indiferença é a sua estetização. Uma indiferença que faz pose supõe possuir alguma solidez. Ela tem ambições de rimar com a vida dos grandes homens. No lugar de um alheamento sem esperança, a estetização da indiferença espera obter aquilo que aparenta negar: sua aparição gloriosa. Esta estetização é epidêmica. Precisa ser vista como uma peste. Seu combate pede gestos sem ilusão nem desespero e é uma maneira de encontrar a espessura das coisas e dos seres: não para consumi-los, mas para ver seus modos de existir. Isto inclui os objetos comezinhos e os seres ordinários. Ver os modos de existir de uma panela, uma montanha, um rio, uma rua, um sofá, um ser humano, um cão... Sem devoção, aversão ou vontade de tirar-lhes a pele. Sem consumo. Sem achar que o tempo está sendo perdido. Considerar não somente os corpos vivos mas também os objetos como memórias ativas. Estas razões já seriam suficientes para concluir que uma visão como esta é menos um bálsamo, um tranqüilizante ou uma terapia do que uma arma revolucionária.

Que esta arma seja bem vinda, pois sempre estivemos numa guerra. Dentro de casa e nas ruas, nos aeroportos, hospitais, clubes e empresas, trata-se de contrariar a homogeneização das experiências e as excessivas estilizações do afeto. [...].

[...] Hoje a produção da miséria do afeto por si implica, imediatamente, a escassez de afeto pelo outro.


SANT’ANNA. Denise Bernuzzi de. Corpos-Passagens. In: Corpos de Passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. P. 117.

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