terça-feira, 6 de abril de 2010

Tempo: a vida comprimida em um dia...



Exercício proposto no último encontro...
Linkar o texto com processos do seu cotidiano. Imagem, áudio, vídeo, escrita, fala, passagens, prática, tantos outros possíveis...

3 de junho de 1905

Imagine um mundo em que as pessoas vivem apenas um dia. De duas uma: ou o ritmo das batidas cardíacas e da respiração é acelerado de modo a comprimir uma vida inteira no espaço de um giro da Terra em torno do seu próprio eixo, ou a rotação da Terra é desacelerado a uma marcha tão lenta que uma volta completa ocupa uma vida humana inteira. Qualquer uma das interpretações é valida. Em qualquer um dos casos, um homem ou uma mulher presencia apenas uma aurora e um crepúsculo.

Neste mundo, ninguém vive o suficiente para testemunhar a mudança das estações. Uma pessoa que nasce em dezembro em qualquer país da Europa nunca vê o jacinto, o lírio, o áster, o cíclame, o educais, nunca vê as folhas de bordo ficarem vermelhas e douradas, nunca vê os grilos ou os pássaros canoros. Uma pessoa que nasce em dezembro passa a vida com frio. Da mesma forma, uma pessoa que nasce em julho nunca sente flocos de neve no rosto, nunca vê a superfície congelada de um lago, nunca ouve o ranger peculiar de botas na neve fresca. A variedade das estações só é conhecida através dos livros.

Neste mundo, uma vida é planejada pela luz. Uma pessoa que nasce quando o sol está se pondo passa a primeira metade da vida no período noturno, aprende ofícios específicos para ambientes fechados, como tecelagem e fabricação de relógios, lê muito, se torna intelectual, come demais, tem medo do vasto breu do lado de fora, aprecia a penumbra. Uma pessoa que nasce com o sol aprende profissões que são exercidas ao ar livre, como ser pedreiro e cuidar de fazendas, mantém a forma física, evita livros e projetos mentais, é ensolarada e autoconfiante, não teme nada.

Tanto as pessoas que nasceram na aurora quanto as que nasceram no crepúsculo sofre um baque quando a luz muda. Quando nasce o sol, aqueles que nasceram quando o sol se pôs são arrebatados pela súbita visão das árvores e oceanos e montanhas, são cegados pela luz do dia, voltam para suas casas, cerram as janelas e passam o resto de suas vidas a meia-luz. Quando vem o pôr-do-sol, aqueles nascidos na aurora choram devido ao desaparecimento dos pássaros no céu, das tonalidades de azul no mar, do hipnótico movimento das nuvens. Choram e se recusam a aprender os ofícios da noite, deitam-se no chão e olham para cima no esforço de ver o que viram no passado.

Neste mundo em que a duração de uma vida humana não passa de um dia, as pessoas prestam atenção no tempo como gatos que sintonizam suas antenas nos ruídos do sótão. Pois não há tempo a perder. Nascimento, escola, romances, casamento, profissão, velhice, tudo precisa caber em uma trajetória do sol, uma modulação de luz. Quando as pessoas se cruzam na rua, tocam levemente seus chapéus e prosseguem apressadamente seus caminhos. Quando visitam ou são visitadas, perguntam umas às outras como vão de saúde e então retomam seus afazeres. Quando se reúnem em cafés, observam nervosamente as mudanças das sombras e nãos e demoram. O tempo é precioso demais. Uma vida é um momento em uma estação. Uma vida é uma precipitação na neve. Uma vida é um dia de outono. Uma vida é uma delicada faixa de luz sendo rapidamente devorada pela penumbra quando se fecha uma porta. Uma vida é um fugaz movimento de braços e pernas.

Quando se chega a velhice, na luz ou na escuridão, uma pessoa descobre que não conhece ninguém. Não houve tempo. Os pais morreram no meio do dia ou da noite. Irmãos e irmãs mudaram-se para cidades longínquas a fim de aproveitar oportunidades fugidias. Amigos mudaram no ritmo da evolução do sol no céu. Casa, cidades, empregos, amantes, tudo foi planejado para caber em uma vida limitada a um dia. Uma pessoa idosa não conhece ninguém. Ela conversa com as pessoas, mas não conhece. Sua vida está espalhada em fragmentos de conversas, esquecida por fragmentos de pessoas. Sua vida é dividida em episódios efêmeros, testemunhados por poucos. Ela senta no criado-mudo, ouve o som da água que corre pela torneira da banheira, pergunta-se se alguma coisa existe fora de sua mente, Aquele abraço da mãe realmente existiu? Aquela rivalidade divertida com a colega de escola realmente existiu? Aquele primeiro arrebatamento sexual realmente existiu? Aquela amante existiu? Onde estão agora? Onde estão agora, quando a pessoa está sentada no criado mudo, ouvindo o som da água que corre pela torneira, percebendo vagamente a mudança da luz?


LIGHTMAN, Alan. Sonhos de Einstein. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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